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domingo, 31 de agosto de 2014

Morar fora e a arte do desapego: o bem mais precioso que se pode guardar são as muitas versões de si mesmo


Em seis anos na Alemanha me mudei umas sete vezes e aprendi na prática a importância do desapego. Desfazer-se de roupas, objetos, sapatos está diretamente atrelado a reforçar a ideia de ser em detrimento de ter. Explico por partes.

Saí de casa pela primeira vez com 19 anos mas continuava chamando a casa da minha mãe de minha casa. Sei, de coração, que para ela, sempre vai ser a minha casa. Mas as andanças e/ou a maturidade que vem com elas me fizeram mudar de perspectiva e, de repente, não faz nenhum sentido manter do outro lado do oceano um armário cheio de livros, roupas e sapatos que eu nunca mais vou usar na vida.

Primeiro por que não me servem: engordei, emagreci, a moda mudou, leio outros autores agora. Outra porque mesmo que todas as coisas que deixei por lá estivessem saindo de um catálogo do mês, eu não sou mais a mesma pessoa que as comprou. Minhas escolhas hoje são completamente diferentes, porque cada vez que eu troco de endereço, não sou mais a mesma de quando cheguei para morar naquela casa.

A versão que saiu do Brasil adorava saltos altos. Hoje, meu objeto de desejo são botinas de couro forradas de lã quentinha para o próximo inverno. Tive uma coleção de bolsas e hoje só compro uma nova quando a atual se desfaz. E não sou a única a passar por isso. Conheço gente que fez malabarismo para colocar dezenas de camisas lindas em uma mala e desde que chegou na Alemanha só aparece em fotos usando camisetas. Ou as caixas de mudanças que foram deixadas no porão de um amigo cheias de coisas absolutamente queridas e que depois de uns meses, já nem se sabe o que está dentro.

Isso não significa que eu não preserve laços com o passado, especialmente com a família, com amigos ou com lugares queridos. Mas quando se decide sair do país – seja por seis meses, por um ano ou pra nunca mais voltar – é preciso aceitar que a vida de quem fica segue sem a nossa presença. E a história que passamos a escrever não cabe mais nas páginas da vida de quem ficou. A grande aventura de finalmente achar no mercado um arroz que fica igualzinho ao do Brasil não interessa em nada a quem ficou, mesmo que essas pessoas continuem nos querendo igualmente bem.

A história que escrevemos longe de casa tem referenciais de cultura tão distantes que quase nada faz sentido para quem segue a mesma rotina, no mesmo endereço. E quando você aparece – de visita, no computador, no telefone – e alguém pergunta como vão as coisas no novo país, a resposta é sempre a mesma: vão bem. Não tem como contar, como explicar que o ar tem outro cheiro, o sol brilha diferente ou que você descobriu um restaurante absolutamente fantástico na esquina de casa. Ninguém tem paciência pra ouvir.

Mudar de país é a prova da existência de universos paralelos: o nosso eu que ficou na memória dos amigos segue uma trajetória completamente diferente do eu que somos agora. E essa diferença afasta, pouco a pouco, mesmo que a gente insista que não. Me considero uma boa cultivadora de amigos, em uma avaliação nada modesta. Tendo a preservar muito mais a memória dos meus amigos distantes do que sou preservada na vida deles: insisto em escrever postais, cartas que mofam em gavetas mesmo sem nunca ter recebido resposta a nenhuma delas. Escrevo mesmo assim porque sei que os destinatários não fazem por mal: tiveram que aprender a viver sem mim e, mesmo com saudades, levaram a tarefa a cabo com maestria. Também porque, na verdade, nem sou mais a pessoa de quem eles sentem falta.

No fundo, a insistência em fazer parte da vida deles é puro egoísmo meu. Não sei se vou voltar um dia e, sinceramente, não sei se me encaixo no papel que um dia representei na vida de cada um. O amor que sinto é uma vaidade de querer manter um pedaço de mim mesma em cada pessoa que passou pela minha vida. O que me leva crer que meu desapego material não se reflete nos sentimentos.

Na verdade, o que preciso mesmo a cada mudança são muitas caixas não para as coisas, mas para cada uma das pessoas que fui ao longo desses anos. Porque sair de casa é, definitivamente, sair de si mesmo e se reinventar com novas prioridades.

4 comentários:

Ludmyla Franca-Lipke disse...

Lindo e verdadeiro, Ivana. até os mais desapegados tem seus apegos. Parabéns e vamos em frente!

Ana Gaspar disse...

Ivana,
Me emocionei ao ler... Perfeito!!
Perfeitamente escrito!!!
Compartilhei no face, pois muitas de nos precisa ler seu texto.
Um grande beijo

Fer Guimaraes Rosa disse...

absolutamente perfeito, Ivana!

beijo,

Celi disse...

Amei seu texto e me identifiquei muito! Incrível as mudanças e pensamentos que temos... Um grande beijo.

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