Em seis
anos na Alemanha me mudei umas sete vezes e aprendi na prática a importância do
desapego. Desfazer-se de roupas, objetos, sapatos está diretamente atrelado a
reforçar a ideia de ser em detrimento de ter. Explico por partes.
Saí de casa
pela primeira vez com 19 anos mas continuava chamando a casa da minha mãe de
minha casa. Sei, de coração, que para ela, sempre vai ser a minha casa. Mas as
andanças e/ou a maturidade que vem com elas me fizeram mudar de perspectiva e,
de repente, não faz nenhum sentido manter do outro lado do oceano um armário
cheio de livros, roupas e sapatos que eu nunca mais vou usar na vida.
Primeiro
por que não me servem: engordei, emagreci, a moda mudou, leio outros autores
agora. Outra porque mesmo que todas as coisas que deixei por lá estivessem
saindo de um catálogo do mês, eu não sou mais a mesma pessoa que as comprou.
Minhas escolhas hoje são completamente diferentes, porque cada vez que eu troco
de endereço, não sou mais a mesma de quando cheguei para morar naquela casa.
A versão
que saiu do Brasil adorava saltos altos. Hoje, meu objeto de desejo são botinas
de couro forradas de lã quentinha para o próximo inverno. Tive uma coleção de
bolsas e hoje só compro uma nova quando a atual se desfaz. E não sou a única a
passar por isso. Conheço gente que fez malabarismo para colocar dezenas de
camisas lindas em uma mala e desde que chegou na Alemanha só aparece em fotos
usando camisetas. Ou as caixas de mudanças que foram deixadas no porão de um
amigo cheias de coisas absolutamente queridas e que depois de uns meses, já nem
se sabe o que está dentro.
Isso não
significa que eu não preserve laços com o passado, especialmente com a família,
com amigos ou com lugares queridos. Mas quando se decide sair do país – seja
por seis meses, por um ano ou pra nunca mais voltar – é preciso aceitar que a
vida de quem fica segue sem a nossa presença. E a história que passamos a
escrever não cabe mais nas páginas da vida de quem ficou. A grande aventura de
finalmente achar no mercado um arroz que fica igualzinho ao do Brasil não
interessa em nada a quem ficou, mesmo que essas pessoas continuem nos querendo igualmente
bem.
A história
que escrevemos longe de casa tem referenciais de cultura tão distantes que
quase nada faz sentido para quem segue a mesma rotina, no mesmo endereço. E
quando você aparece – de visita, no computador, no telefone – e alguém pergunta
como vão as coisas no novo país, a resposta é sempre a mesma: vão bem. Não tem
como contar, como explicar que o ar tem outro cheiro, o sol brilha diferente ou
que você descobriu um restaurante absolutamente fantástico na esquina de casa.
Ninguém tem paciência pra ouvir.
Mudar de
país é a prova da existência de universos paralelos: o nosso eu que ficou na
memória dos amigos segue uma trajetória completamente diferente do eu que somos
agora. E essa diferença afasta, pouco a pouco, mesmo que a gente insista que
não. Me considero uma boa cultivadora de amigos, em uma avaliação nada modesta.
Tendo a preservar muito mais a memória dos meus amigos distantes do que sou
preservada na vida deles: insisto em escrever postais, cartas que mofam em
gavetas mesmo sem nunca ter recebido resposta a nenhuma delas. Escrevo mesmo assim
porque sei que os destinatários não fazem por mal: tiveram que aprender a viver
sem mim e, mesmo com saudades, levaram a tarefa a cabo com maestria. Também
porque, na verdade, nem sou mais a pessoa de quem eles sentem falta.
No fundo, a
insistência em fazer parte da vida deles é puro egoísmo meu. Não sei se vou
voltar um dia e, sinceramente, não sei se me encaixo no papel que um dia
representei na vida de cada um. O amor que sinto é uma vaidade de querer manter
um pedaço de mim mesma em cada pessoa que passou pela minha vida. O que me leva
crer que meu desapego material não se reflete nos sentimentos.
Na verdade,
o que preciso mesmo a cada mudança são muitas caixas não para as coisas, mas
para cada uma das pessoas que fui ao longo desses anos. Porque sair de casa é,
definitivamente, sair de si mesmo e se reinventar com novas prioridades.